PINGA NI MIM

Pela-goela. Garapa doida. Caninha. Branquinha. Goró. Pinga. Birita. Água que passarinho não bebe. Abrideira. Perigosa. Mardita. Sinônimos, na língua portuguesa, não faltam para a cachaça. Também, pudera: genuinamente brasileira, a birita está há quase cinco séculos no paladar do país.

Apesar de carregar todo esse peso histórico, a aguardente, criada a partir da destilação da cana-de-açúcar, quer deixar de ser considerada um produto menor, ainda mais quando comparada ao whisky, ao vinho ou à tequila. Não à toa, uma das principais motivações de seus produtores, divulgadores e degustadores, sobretudo dos anos 1990 para cá, é justamente mostrar a qualidade que carrega uma garrafa ou um copo da bebida.

Criada em outubro de 1993, a Academia Brasileira da Cachaça realiza um trabalho “de gole em gole”. A missão da entidade, formada por 40 imortais – qualquer semelhança com a Academia Brasileira de Letras não é mera coincidência –, é difundir a caninha e eliminar preconceitos em relação ao “cachaceiro”, ainda associado a termos como “bebum” e “bêbado”. “Em um primeiro momento, quisemos reunir um seleto grupo de pessoas influentes em várias áreas para jogar luz sobre a cachaça, colocá-la na mídia”, conta Paulo Antonio Magoulas, presidente da ABC, justificando a escolha de nomes como os cantores Paulinho da Viola e Beth Carvalho, o cartunista Jaguar e a atriz Ângela Leal em seu corpo. Fazem parte da Academia 30 homens e 10 mulheres.

O mais recente membro é o ator Antônio Pedro. Sua posse, regada a branquinha, claro, será logo após o Carnaval. “Reunimo-nos geralmente para eleger os novos integrantes da Academia”, conta Magoulas. A eleição de Antônio Pedro, que entrará no lugar do também ator Hugo Carvana, morto em outubro do ano passado, foi em dezembro último. A exemplo da academia literária, quem quiser fazer parte da ABC deve se lançar como candidato e, a partir disso, ser escolhido pelos imortais.

Outra curiosidade da Academia Brasileira da Cachaça se relaciona a cada um dos patronos das cadeiras dos imortais. O jogador de futebol Garrincha, os músicos Candeia, Noel Rosa, Cartola, Nelson Cavaquinho e Elizeth Cardoso e o escritor Luís da Câmara Cascudo são alguns dos homenageados na organização. Aliás, vale uma dica: Cascudo é autor de Prelúdio da cachaça, livro que esmiúça algumas características da aguardente e revela algumas lendas a seu respeito.

Os encontros entre os imortais não têm um roteiro pré-determinado, uma periodicidade definida e nem mesmo um lugar específico. “Mas, quando nos encontramos, bebemos, experimentamos novas marcas e jogamos conversa fora”, diz Magoulas.

POTENCIAL É O QUE NÃO FALTA

Segundo dados do Centro Brasileiro de Referência da Cachaça, o Brasil produz por ano atualmente cerca de 1,4 bilhão de litros de cachaça – em 1970, eram 418 milhões de litros. Deste total, apenas 1%, ou 14 milhões de litros, é exportado, o que mostra o poder do consumo interno do produto e o potencial de crescimento para além das fronteiras brasileiras.

Para José Lúcio Mendes, diretor de marketing da Expocachaça, evento anual que reúne de 400 a 500 marcas do setor em São Paulo e em Belo Horizonte – a 25ª edição do evento vai acontecer em junho ou julho deste ano –, trata-se de um número muito aquém de seu potencial. “Faltam políticas públicas para vender a cachaça como um produto brasileiro no exterior”, afirma.

Presidente da diretoria executiva do Instituto Brasileiro da Cachaça (Ibrac), Vicente Bastos Ribeiro diz que inserir o destilado no mercado, principalmente o internacional, é complicado. “O segmento é um oligopólio. Não é fácil brigar com gigantes que representam outras bebidas”, diz. Para o setor crescer ainda mais, ele defende uma junção de investimentos privados das grandes marcas produtoras com o aporte do governo, que precisaria, em sua visão, abraçar a caninha e realizar uma campanha que possa valorizá-la.

No mercado interno, a dificuldade é combater o produto que é vendido sem fiscalização dos órgãos governamentais que regulam a qualidade da bebida e sem rótulo, geralmente em garrafas PET. “É difícil uma categoria evoluir tendo essa concorrência clandestina”, alerta o presidente do Ibrac.

DESDE A COLONIZAÇÃO

O preconceito em relação à cachaça não é recente e nem mesmo resultado de campanhas contrárias protagonizadas por seus rivais, como o whisky. Remete ao início do século 16, quando a colonização brasileira começava. É desse período, mais precisamente da década de 1530, que se tem notícia da produção dos primeiros litros da aguardente.

Autora do livro Cachaça – Um amor brasileiro, Alessandra Garcia Trindade destrincha a história da bebida no país. “Nos engenhos de açúcar, durante a fervura da garapa, surgia uma espuma que era retirada dos tachos e jogada nos cochos para servir de alimento aos animais. Dentro desses cochos, o produto fermentava e era consumido por bois. O mesmo caldo também passou a ser ingerido pelos escravos, chamando a atenção dos senhores de engenho, que já conheciam técnicas de destilação para a produção da chamada bagaceira – bebida feita do mosto fermentado da uva, tradicional em Portugal. Aplicando a mesma técnica no mosto fermentado da cana, originou-se a cachaça”, explica a escritora.

A bebida também teve papel fundamental nas trocas comerciais entre o Brasil e a África, onde era adquirida mão-de-obra para trabalhar nos engenhos de açúcar. A cachaça era utilizada como moeda de troca para a compra de negros africanos, por exemplo. E, segundo Trindade, permitia a redução de custos com o transporte, uma vez que, enquanto os navios negreiros iam para o Brasil carregados de mão-de-obra escrava, eles retornavam à África repletos de cachaça e outros produtos.

O consumo da “mardita” no Brasil, seja pelos escravos seja por outros setores da sociedade colonial, e o seu uso na compra de mão-de-obra na África, no entanto, não eram bem vistos pela Coroa Portuguesa. O motivo era simples: a cachaça concorria com a bagaceira e os vinhos portugueses, acarretando prejuízos ao Tesouro Real. Em meados de 1660, inclusive, Portugal chegou a proibir a plantação da cana em regiões como Pernambuco e Rio de Janeiro e passou a cobrar impostos sobre a produção, gerando uma enorme insatisfação que resultaria na Revolta da Cachaça (1660-1661), como o conflito é conhecido na história brasileira.

“Com a descoberta das pedras e dos metais preciosos em Minas Gerais, houve um fluxo econômico para o interior e para lá também foi a cachaça”, conta Trindade. Segundo a escritora, a bebida, inicialmente, era produzida na região de Paraty, no Rio de Janeiro – a cidade do litoral sul carioca tem um dos principais festivais de cachaça do Brasil hoje em dia – e levada em tonéis de madeira para ser consumida na região mineradora. “Só depois ela passou a ser produzida em Minas, que hoje é o Estado que concentra a maior quantidade de alambiques do país”, acrescenta.

DIGA NÃO À CAIPIROSKA!

“A palavra ‘proibição’ acompanha a cachaça desde o seu surgimento. Acredito também que essa pecha de ser considerada uma ‘bebida menor’ advém justamente da competição que havia entre a bagaceira e a cachaça.” Quem diz isso é a sommelier Deise Novakoski, também integrante da Academia Brasileira da Cachaça. “Não entendo como e por que as pessoas ainda pedem caipirinha com vodca”, reclama Magoulas, que afirma que o drink nacional deve ser feito com cachaça.

O preconceito, nos últimos 20 anos, tem diminuído. Entre os motivos apontados por Trindade para essa mudança estão a inserção da caninha em cartas de refinados restaurantes e o reconhecimento da cachaça pelos Estados Unidos, em 2012, como bebida típica e de produção exclusiva do Brasil. “Foi também preciso que tivéssemos marcas de cachaça com valores de whisky e em belas embalagens”, diz a autora. Garrafas de abrideira variam de R$ 3 a R$ 400 em média, dependendo do tempo de envelhecimento do produto. E tem mais: em importantes competições internacionais, como o Concurso Mundial de Bruxelas, que avalia destilados de todo o mundo, tornou-se comum a cachaça aparecer entre os primeiros lugares.

Outra iniciativa que poderá ajudar na ampliação do conhecimento da pinga é o Museu Brasileiro da Cachaça, a ser fundado no Rio de Janeiro. “A ideia é criar um espaço totalmente interativo, a fim de mostrar ao visitante a cadeia produtiva da caninha e a relação que a bebida tem com a história brasileira”, adianta Novakoski, uma das mentoras do projeto, orçado em R$ 30 milhões.

Revista da Cultura teve acesso ao mapa do museu, a ser composto por sete salas expositivas. Em uma delas, será possível observar como a cachaça está inserida na literatura e na música brasileiras. Em outro ambiente, a vinculação da marvada com a gastronomia estará presente, destacando, por exemplo, a união dela com a feijoada.

Outro destaque do museu é a sala que mostra as centenas de rótulos de garrafa da bebida, um show à parte em decorrência da criatividade de seus produtores ao nomeá-las. Amansa Sogra, Chora no Pau ou Consola Corno são os títulos de algumas das cachaças feitas no Brasil. Vai um gole?

Link:http://www.revistadacultura.com.br/revistadacultura/detalhe/15-01-06/Pinga_ni_mim.aspx.aspx