Rótulos de cachaça refletem a visão da cultura popular sobre a bebida

Poucos se dão conta, mas por trás de toda peça de design gráfico há um sistema de informações que orienta a escolha do tema, das cores, tipos e tamanhos das letras, disposição dos recursos gráficos e outras definições. Foi justamente em busca dos fatores que influenciam a codificação dos rótulos de cachaça que compõem a Coleção Almirante, preservada na Fundação Joaquim Nabuco, que a designer Swanne Almeida pesquisou e elaborou a dissertação “O Sistema informacional dos rótulos de cachaça brasileiros – O estudo comparativo entre os estados de Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo”, defendida no Programa de Pós-Graduação em Design da UFPE, em julho de 2013. Entre outras conclusões, o trabalho atesta a riqueza iconográfica desses artefatos e como suas informações traduzem parte da realidade cultural do país.

Segundo Swanne, o sistema informacional que predominou na identificação da bebida produzida entre as décadas de 40 e 50 do século passado, nos três estados, embora apresente algumas peculiaridades regionais, recorriam a repertórios similares, com o uso recorrente de imagens de mulheres, homens e animais. “Os rótulos retratam as relações sociais, os costumes e os valores da população de determinadas épocas. Esta riqueza visual é um campo fértil para o estudo do design gráfico, da informação e da própria cultura”, analisa. Outra característica verificada no estudo, as papeletas de identificação dos destilados também apresentavam uma forte influência da visão que a cultura popular mantinha da bebida, associando-a à cura de mazelas, alívio de mágoas, comemorações, temas musicais e, ainda, fonte de inspiração de poesias e cordel.

A pesquisa, orientada pela professora Solange Coutinho, preenche uma lacuna na memória gráfica brasileira e teve como base de análise 158 peças, por meio do modelo proposto por Mijksenaar, que investiga os elementos de uma composição, considerando os diferentes níveis de leitura e variações na hierarquia informacional. “Percebemos que as informações eram organizadas por afinidade significativa e que a relação entre as informações no primeiro plano de leitura, tal como designação e imagem ilustrativa é fundamental na organização visual dos rótulos em todos os estados”, afirma a pesquisadora. “Dentre os outros fatores que influenciavam as produções estão as técnicas de impressão (litografia e tipografia), o repertório da cada região e o imaginário relacionado à cachaça e a época”, completa.


HISTÓRIA – De acordo com o trabalho, a partir da inserção brasileira no sistema industrial, no século XIX, surgiu a necessidade de criar projetos como marcas e vários tipos de impressos, que diferenciassem os produtos no mercado competitivo. “Nesse contexto, a litografia foi amplamente utilizada na impressão de rótulos, embalagens e cartazes”, afirma Swanne. Além do impulso na criação de marcas e rótulos, o que se verificou foi a “liberdade compositiva como uma de das grandes vantagens da produção gráfica na época”, segundo a designer. 


A dissertação relata que a partir dos rótulos observados foi possível encontrar humor e erotismos nas produções, que unem imagens, nomes e eufemismos da cachaça. Como é o caso da figura reproduzida abaixo, que faz alusão a Martha Rocha, que se tornou referência de beleza nacional após ser eleita Miss Brasil em 1954. Ou outra figura, que traz humor com a expressão e o retrato de um “Capêta”, fazendo alusão a uma bebida quente tal qual a cachaça.

(Fonte: Coleção Almirante, Acervo Fundação Joaquim Nabuco)


Ainda segundo a análise da pesquisadora, dentre as semelhanças mais marcantes encontradas está o repertório temático, que mostrou recorrência no uso de animais (muitos dos quais, pertencentes à fauna brasileira), engenhos, homens trabalhando, mulheres sensuais bebericando, futebol, casais, santos, música, dentre outros. Nos três estados estudados, as composições mais predominantes são aquelas que utilizam apenas tipografia ou têm como figura ilustrativa mulheres, animais, homens e a cana-de-açúcar.


“As produções da época deviam seguir as informações requisitadas nos decretos que regulavam a rotulagem do período, o que fazia com que houvesse uma similaridade nas informações encontradas, tais como a marca do produto, o fabricante, o endereço, dentre outras”, observou Swanne. Outra semelhança identificada foi quanto à organização visual nos rótulos da análise, sendo um padrão frequente: imagem ilustrativa e designação posicionadas na região central do rótulo; engarrafador seguido do seu respectivo endereço, posicionado em campo inferior do rótulo, acompanhado por vezes de algum elemento de suporte (caixa, linha) e informações tais como "graduação" e "registro" em letras menores se encaixando ao redor da imagem ilustrativa ou junto do campo dedicado ao engarrafador.


Os particularismos de cada estado puderam ser observados, segundo a pesquisa, especialmente em Pernambuco, possivelmente por São Paulo e Rio de Janeiro serem mais próximos em localidade, uma vez que na época a fluidez das informações e referências não era tão intensa como hoje. Uma dessas diferenças observadas foi o padrão cromático. “Em Pernambuco claramente há uma tendência para o uso das cores vermelho, amarelo e preto”, atesta. Nos rótulos dos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, por sua vez, utiliza-se uma paleta um pouco maior, incluindo também o verde e o azul.

De acordo com a análise da designer, este padrão cromático pernambucano foi provavelmente potencializado pela popularidade da cachaça Pitú, que influenciava muitas das composições também na disposição dos elementos. “Podemos adicionar assim, as cachaças populares da época como outro fator condicionante dos rótulos”, afirma. Em Pernambuco, também foram identificados rótulos que utilizavam provavelmente como referências as cachaças Pitú e a Serra Grande, enquanto em São Paulo encontraram-se prováveis imitações da Pirassununga 1941 e da Tatuzinho. Provavelmente existem outras e a busca por estas referências pode ser um dos desdobramentos deste estudo.

O trabalho da designer está inserido no Projeto de Pesquisa Memória Gráfica Brasileira (MGB), cujo objetivo principal é identificar e analisar exemplos relevantes de manifestações gráficas que marquem a memória, a paisagem urbana e a identidade das cidades do Rio de janeiro, Recife e São Paulo. O levantamento prossegue no doutorado, com a pesquisadora focando nas Ilustrações, referências estilísticas na composição das imagens e na identidade visual dos artefatos.


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Programa de Pós-Graduação em Design da UFPE

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