Fonoaudióloga largou ofício para dedicar-se ao alambique da família

RIO — A fonoaudióloga Kátia Espírito Santo se entregou à cachaça aos 48 anos, em 2001. Especializada em desenvolvimento em aprendizagem e consultora da ONU, ela já havia trabalhado em países como Angola e Moçambique, nos anos 1980 e 90, inclusive com crianças vítimas de guerra, num projeto de "desmedicalização" do fracasso escolar. Foi quando seu pai, José Ramos Alves, ficou muito doente, e ela, que nem era chegada à branquinha, foi para a cidade do Carmo, no interior do Rio, para beber da experiência dele no alambique que é da família desde que foi comprado por seu avô, Francisco Lourenço Alves, em 1923.
 
Bebeu até a última gota. E procurou outras fontes, para qualificar ainda mais a velha Cachaça da Quinta, que passou a produzir em 2007 e a comercializar em 2009. Ao completar 90 anos, em 2013, a aguardente da família - que até então era local e regional - ganhou o mundo: é a primeira cachaça na história a receber a Grand Gold Medal na prova dos destilados, a Spirits Selection do Concurso Mundial de Bruxelas, realizado em Taiwan, em junho do ano passado, concorrendo com 800 destilados dos cinco continentes.

 

Katia Espitito Santo produz na cidade de Carmo, no Rio de Janeiro a Cachaça da Quinta, recentemente eleita o melhor destilado do mundo Foto: Leo Martins / Agência O Globo

 

Katia Espitito Santo produz na cidade de Carmo, no Rio de Janeiro a Cachaça da Quinta, recentemente eleita o melhor destilado do mundo Leo Martins / Agência O Globo

 

— Esta entidade também escolhe os melhores vinhos do mundo há mais de 20 anos. E o vinho brasileiro, assim como o espumante (e temos ótimos deles), nunca ganhou uma Grand Gold Medal. Quem ganhou foi a cachaça. Felizmente, a nossa cachaça. Foi bom também para o Brasil, que tem pela primeira vez a bebida no topo da lista dos destilados mundiais, junto com conhaques, armanhaques, vodcas, uísques... A cachaça nunca havia chegado lá. Também foi importante para o estado do Rio, que está se transformando num polo de excelência de cachaça - diz, inebriada (no sentido de entusiasmada), a atual presidente da Associação os Produtores de Cachaça do Rio (Apacerj) e membro do Conselho deliberativo do Instituto Brasileiro da Cachaça (Ibrac), com assento na Câmara Setorial da Cachaça, que reúne entidades representativas do setor e poder público. — Eu hoje vivo disso. Minha fonte é essa. E é um setor que me absorve muito. Uma cachaça mesmo!

Kátia é viciada em trabalho. Quando resolve que vai tocar um projeto, cuida para que tudo seja perfeito.

— Não entendo nada de cachaça, mas minha amiga não faz nada mais ou menos. É muito exigente, aplicada e ética. Além do mais, tem senso crítico e estético enormes. Tudo a que se dedica é muito estudado — diz a fonoaudióloga Eliane Fonseca, que fez faculdade com Kátia, dividiu consultório com ela por 20 anos e a acompanhou no trabalho em Moçambique.

Quem entende de cachaça não tem opinião diferente. Com a palavra, o superintendente da Fundação Nacional de Qualidade (FNQ) Jairo Martins, que é especialista na bebida, tem um site com o sugestivo nome de "O Cachacista", e ajudou Kátia a escrever o livro "Carta da Cachaça: história, degustação, harmonização, serviço, empresas e produtos", que será lançado em março:

— A principal qualidade de uma cachaça está mais na mão de quem a faz do que na própria natureza. E a Kátia se dedica à qualidade do processo, obtendo um produto limpo, sem partículas em suspensão, com a cor correta. — A base de tudo é a branca, que acabou de ser premiada no concurso de Bruxelas, e cai bem como aperitivo, bem gelada. Mas tem a de carvalho, com notas de baunilha e até de caramelo, que por sua complexidade é adequada para acompanhar pratos principais, especialmente os condimentados; e a amburana, com notas de amêndoa e canela, que harmoniza muito bem com sobremesas. Ela tem, então, a sequência perfeita: a abrideira, a companheira e a saideira.

Tudo isso, conta a "cachaceira" (como gostam se ser conhecidos os produtores da branquinha), é resultado de um processo dose a dose.

— Apesar de eu só ter me envolvido com ela bem mais tarde, a cachaça está no meu DNA. Desde crianaça, eu assistia à produção. Andava entre toneis e cana. Isso marca a pessoa. Tanto é que a minha cachaça predileta é a dos sabores da minha infância, que é a envelhecida na madeira de amburana, uma cerejeira muito usada para fazer móveis antigamente. Quando meu pai começou a ter problemas, eu morava fora, mas comecei a vir, ter mais contato e sistematizar. Aprendi todo o modo tradicional de fazer cachaça, vi as dificuldades, passei a conhecer um pouco melhor a região... E ai comecei a assumir, a fazer cursos, a contratar consultores para conhecer mais profissionalmente a produção da cachaça, a visitar várias fábricas e a projetar este modelo que eu tenho hoje. Reformei tudo. O alambique dele não era por gravidade. Mas, com a dificuldade imensa de mão de obra que temos aqui, precisava ter um fluxo por gravidade. Montei em 2004 a atual empresa, a Fazenda da Quinta Agronegócios. Reformatei o negócio.

E essa foi só a primeira dose. Kátia foi procurar uma designer que desenhasse uma logomarca elegante, para ser estampada num rótulo de papel reciclado e combinar com a garrafa que encomendou na fábrica francesa Saverglass.

— Eu queria fazer coisas que de fato valorizassem a Cachaça da Quinta. Embora eu não bebesse aguardente até me interessar pelo negócio, e nem tivesse feito cursos de degustação ainda, sabia que tinha um bom produto. Além de as pessoas gostarem, laboratorialmente meu produto era considerado muito diferenciado. Faço testes regularmente. Tenho controle interno de qualidade, que são os testes que você pode fazer numa fábrica com a minha escala de produção: acidez, cobre, teor alcoolico, sacarose... E um controle técnico, feito por um laboratório especializado com vasto conhecimento em cachaça. Isso me deu muita confiança para investir em embalagem, na marca (que já era um Q, mas não assim). Eu já tinha um produto orgânico, e sabia que estava dando a ele uma linguagem valorizada no mercado internacional. Sabia que tudo isso seria bem lido por um público americano ou europeu.

Como boa "cachaceira", a empresária não quer saber da hora de parar. Continua produzindo de 30 mil a 60 mil litros de cachaça, como na época do pai, por pura falta de mão de obra: são apenas dez empregados. Mas tem capacidade instalada para aumentar a produção. Todo o processo de fabricação é artesanal, e o resíduo orgânico é reutilizado para fertilizar a plantação. Atualmente, a Cachaça da Quinta é vendida no Rio, São Paulo, Minas Gerais e Espírito Santo, e exportada para Taiwan.

— Meu maior desafio agora é crescer. O êxodo rural levou todo mundo. Trago pessoas para capina e corte de cana do Norte de Minas, a mil quilômetros de distância. Eles vem umas duas, três vezes ao ano. Seleciono muito. Sou muito enjoada! — diz ela, que aos 59 anos também é mão de obra da própria fábrica. — Tive que ir para o campo efetivamente ensinar a cortar. Você pode saber que o corte é baixo, mas você tem que saber o que é baixo, para ver se está suficientemente baixo. Nossa produtividade era baixíssima. Os funcionários cortavam cada um 350 quilos de cana diariamente. Ai fui para o campo qualificá-los. Primeiro eles não gostaram. Tive que explicar que eu não estava lá para ver se eles estavam trabalhando muito ou pouco, mas se estavam trabalhando certo. Ai chegaram a 750 quilos de corte. Mas os que trago de Minas cortam tranquilamente duas toneladas.

Recentemente, Kátia contou com o poio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) que, através de um programa de inovação tecnológica direcionado para as empresas, contratou dois doutores e uma mestre em engenharia química e engenharia de alimentos para fazer um estudo inédito sobre a amburana, a madeira mais antiga da tanoaria brasileira:

— Cada coisa que eu faço aqui eu tenho que estudar, pois o mercado não é como o do vinho, em que tudo está catalogado. Com base nesse trabalho, desenvolvemos duas bebidas: um licor de amburana e uma bebida mista de amburana. Agora estou começando a desenvolver as embalagens e marcas.

Ainda este ano, a empresária pretende brindar de novo, provavelmente com cachaça de amburana, uma boa colocação no Concurso Mundial de Bruxelas, que este ano acontece no Brasil:

— Vou concorrer de novo. Da primeira vez mandei a minha branca porque, embora eu tivesse uma cachaça de dois anos em carvalho, sabia que os europeus trabalham o carvalho como ninguém nas bebidas deles. O jurado internacional conhece o carvalho. Já a amburana eles iam achar muito diferente. Um podia se encantar, mas era meio arriscado. Então mandei a branca, a referência, o começo.

Tem algum momento em que se afogar na cachaça vira um porre na vida da ex-fonoaudióloga?

— O porre é só a dificuldade de conseguir empregados. Mas, mesmo assim, eu levo bem — garante ela.

Com o aval de experts no mercado, como Antônio Tavares da Silva, gerente executivo do Centro Tecnológico Senai de Alimentos e Bebidas, para quem Kátia é uma lutadora do setor.

— A capacidade empreendedora e o capricho da Kátia impressionam — atesta Lídia Espíndola, analista da coordenação de Alimentos do Sebrae/RJ. — Ela tem feito um excelente trabalho não só pela dela, mas pelas cachaças do Rio. Para o estado, isso agrega um valor enorme, pois mesmo quem é daqui não conhece as boas cachaças que tem. Quando vamos a um bar, não precisamos pedir uma cachaça de Minas.


Publicado no O GLOBO.